sábado, 28 de junho de 2008

Engenho de bangüê

Engenho de bangüê
Os engenhos, ancestrais das usinas, tinham a sua cantiga, entoada dia e noite pelos escravos, durante a labuta.


Cantiga de engenho

Meu engenho é bangüê
Bangüê, bangüê, bangüê!
Meu engenho roda d’água
é danado pra moer!

Fornalheiro, fornalheiro,
Bote fogo na fornalha,
Que o engenho tá fumaçando,
Mas a tacha não trabalha!

Moendeiro, moendeiro,
Bote a roda pra correr,
Tome conta da moenda,
Bote cana pra moer!

Meu engenho é bangüê,
Bangüê, bangüê, bangüê,
Meu engenho roda d’água
É danado pra moer!

Seu mestre, segure o ponto,
Olhe o mel que está de vez,
Seu mestre não se descuide,
Não vá queimar outra vez!

O açúcar está pesado,
Ensacado pra vender,
Senhor de engenho na praça
Com dinheiro já se vê!

Meu engenho é bangüê,
Bangüê, bangüê, bangüê,
Meu engenho roda d’água
É danado pra moer!

Engenho de bangüê

Engenho de bangüê

sexta-feira, 27 de junho de 2008

De madeira e água

Jamaica. Esse nome lembra fruta estrangeira, das que sempre se quis provar o gosto. No passado, talvez soasse ainda mais saboroso: Xaymaca, algo como “terra de madeira e água”. Assim o chamavam, tão apropriadamente, os tainos, pacífica tribo falante de língua aruaque oriunda da América do Sul, que ali teria chegado antes do ano 1000. Já o jamaicano contemporâneo usa pronunciá-lo assim, em seu inglês permeado pelo patois, o dialeto local: “Jamiaca” -não é gostoso de repetir?
Jamaica m’crazy! , eis um dos bordões da pequena ilha caribenha ao sul de Cuba. Dita em sonoro patois, a frase de construção gramatical estranha ilustra, com humor, os riscos de um viajante incauto ao se aventurar por lá. Pois a ilha tem mesmo um dom de enlouquecer, para o bem como para o mal, dependendo do humor de quem a visita. Um coração aberto aumenta as chances de se entrar em transe – no melhor sentido da expressão.
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Meus planos de ir à Jamaica no final de novembro, para escapar ao temido furacão (cuja estação, na ilha, começa a ser contada oficialmente em junho e se estende outubro afora), foram por água abaixo. A força das circunstâncias antecipou a viagem para agosto, tido, justamente, como o mês mais crítico. Felizmente, os ventos estiveram (mesmo!) a favor: este ano o furacão passou longe do país, onde desfrutei de dias que alternaram aventura e ócio.
Desde o início planejei fazer o contorno da ilha - o que, de fato, aconteceu. Na Jamaica, só há dois aeroportos internacionais, e a maioria dos turistas desce na movimentada Montego Bay, paraíso dos resorts do tipo all inclusive. Preferi tomar Kingston, a capital, como referência e me surpreendi com a cidade, que imaginei feia mas, ao contrário disso, se revelou interessante e cheia de possibilidades. Logo no trajeto aeroporto-hotel, me pareceu bonito o seu porto natural (o sétimo maior do mundo); admirei as montanhas que a circundam e que, vistas de longe, são azuis. As mais famosas delas, conhecidas como Blue Mountains, guardam o ponto culminante da ilha, com 2.250 metros de altitude. De clima mais frio, a região montanhosa destoa da tropicalidade reinante no resto da ilha, onde faz um calor de derreter pedra, o ano todo.
Maior cidade de língua inglesa do Caribe, Kingston é o centro cultural da Jamaica, a cidade onde tiveram início os movimentos políticos pela independência, e que tornou-se capital em 1872, substituindo Spanish Town. Fiquei em New Kingston, onde se concentram os principais hotéis. Ali você tem tudo em mãos – restaurante, casa de câmbio, livraria, lanchonete, um razoável comércio... E é onde fica, no lendário endereço da Hope Road 56, a casa onde viveu Bob Marley, transformada em museu em 1986, cinco anos depois de sua morte.
Bob é cool

Para os fãs, a visita ao museu é inquestionável – como não se discute o fato de parte significativa dos turistas que escolhem a Jamaica como destino o fazerem motivados pelo ícone do reggae. E o país tem no turismo sua principal receita, antes da exportação da bauxita, banana e cana-de-açúcar, os produtos mais importantes... “Ele salvou a Jamaica”, me disse, convicto, o rastafári Jose, que bate ponto na Hope Road e mantém vínculos de amizade com alguns membros da família Marley. Faz todo o sentido. Economia local à parte, Bob é tido como um modelo de coerência entre a vida que ousou levar e a música que produzia. A temática libertária de suas letras, embelezada por melodias dignas dos melhores adjetivos e um ritmo que hipnotiza, fez do astro unanimidade nacional, o cara que todos admiram e de quem captam as idéias. Bob é cool, resumiria, simplesmente, um jamaicano, fosse ele o autor desse texto.
Difícil é imaginar que alguém vá à Jamaica sem sentir ao menos alguma simpatia pela figurinha dos dreads trepidantes. Tudo ali, afinal, tem a cara dele, estampada em camisetas vendidas na areia, em livros que decoram vitrines ou na batida sensual de seu reggae, embalando as ruas e suscitando a “emancipação mental”.
Passados 25 anos de sua morte (completados em 11 de maio), Marley continua a ser cultuado no mundo todo. Tanto mais em sua terra natal, onde os adeptos do rastafarianismo, seus correligionários, o têm como real profeta. Rastafári ou não, todo jamaicano sabe de cor as letras do vasto repertório do ídolo que internacionalizou o reggae.
As mulheres, particularmente, mostram que estão para derreter, à simples menção de seu nome. “Ele era muito-muito-muito bonitinho”, suspirava a menina que me vendeu, em Negril, um pôster do herói em pose descomplicada, de peito nu. “Ah, se fosse vivo! Ele inspira cuidados e uma vontade de colocar no colo”, confessou outra mais entusiasmada, na mesma cidade.
Hope Road, 56
No interior da ampla casa onde Marley viveu, fãs percorrem cômodos forrados por artigos de época sobre o cantor, ao som de sua música, que toca o dia todo. E apreciam algus de seus objetos pessoais (como a surrada bermuda jeans usada nas famosas partidas de futebol), seu quarto decorado com objetos de inspiração africana, figurinos usados por ele e as I-Three (o irrepreensível coro que tinha sua mulher, Rita, entre as três vocalistas) e os discos de ouro.
A residência conserva as marcas de balas nas paredes da entrada dos fundos, lembrança macabra do atentado sofrido em dezembro de 1976. A visita oficial culmina na apresentação de um filme sobre sua curta vida (Bob morreu em decorrência de um câncer, aos 36 anos). O visitante pode provar um refresco no quiosque anexo (o de callaloo, vegetal muito apreciado na Jamaica, é inesquecível) e comprar, nas lojinhas ao lado da casa, objetos que remetem ao rei do reggae.
Mesmo depois de fechado o museu, ainda se experimenta um bocado da presença de Bob. Um tronco de árvore no jardim, onde se sentava para bater papo ou descansar, era seu canto preferido. No mesmo lugar, degustei um prato de refeição ital (natural) -vegetais, arroz e peixe sem sal ou gordura, cardápio básico dos rastafáris. Tony, de 61 anos, mesma idade que Marley teria hoje, contou algumas historinhas sobre o cantor, com o qual conviveu, enquanto o garoto Samuel, de 5, neto do astro, corria alegre e anônimo pátio afora.
Como nos tempos em que Bob reinava no pedaço, o local continua a ser ponto de encontro da comunidade rasta de Kingston. Nos finais de tarde, se reúnem, alguns portando seu chalice, o
"cachimbo da paz", recheado de água e ganja (para nós, maconha), parte integrante de um ritual de meditação sempre levado a sério. Enquanto entoam cânticos ou se dedicam a intermináveis preces em louvor a Jah (abreviatura de Jeová), nem tente puxar conversa.
Misticismo, ganja e dreadlocks
A mística rastafariana talvez não desperte um real interesse por parte do turista sem muita disposição para um olhar que ultrapasse os limites dos resorts. Todavia, não passa despercebida por nenhum visitante. O rastaman enche de cor e estilo as ruas, com seu figurino despojado (cuidadosamente composto, eu poderia jurar) e acessórios em tons que evocam a bandeira da Etiópia - verde, amarelo-ouro e vermelho, acompanhados do preto.
Uma aproximação mais abrupta nem sempre é recebida com um sorriso: rastas muitas vezes se mostram desconfiados de quem os indaga diretamente sobre sua filosofia sem dogmas, de identidade africana e oriunda de um movimento negro do século 19, fundada em 1930. Ao perceberem que você está desarmado, a coisa talvez mude de figura, e uma boa amizade pode começar assim.
Inspirados pelo último imperador da Etiópia, Hailé Selassié I, originalmente conhecido como Ras Tafari Makonnem e tido por eles como a reencarnação do Messias, cultuam a Etiópia como a terra prometida e defendem o pan-africanismo, a diáspora negra, a igualdade de raças e o amor à natureza.
Sobre suas espessas mechas, são enfáticos: “Isso não se enrola; você apenas deixa crescer sem pentear e os dreads vêm naturalmente”, ensina o amável Orville, rasta branco de 23 anos, cujos cachos começam a despontar. Dreads lembram a juba de um leão, animal alegórico na filosofia rastafári, expresso na simbologia do Leão de Judá.
Apesar da pouca idade, Orville expõe suas crenças com veemência (num patois “carregado”, é verdade), de um jeito muito tranqüilo. Para ele, contudo, Selassié é um profeta, não o filho de Deus. Um detalhe que parece não ter a menor importância no contexto: “Amar e respeitar a natureza, a mulher, a criança; dizer a verdade a si mesmo e combater a cegueira do coração” é sua receita para uma vida plena.
Para alcançar tal resultado, a maioria recorre a uma fórmula proibida: botam para queimar a puríssima ganja largamente produzida no país, conhecida como kaya. Conforme acreditam, a erva limpa a mente, clareia as idéias, induz à meditação e inspira pensamentos elevados. O uso ritual da cannabis, aliado à espartana dieta ital (o rastafári não ingere carne vermelha, álcool ou produtos industrializados), teria o dom de lhes conferir disposição para perseguir a “verdade” e se comunicar com Jah. Os próprios dreads, despontando como antenas e esparramados sobre os ombros, sugerem essa conexão. Para abrigar uma “mente sã”, cuidados diários com a forma física: rastas prezam muito exercitar seus corpos magros e perfeitos.
Na Jamaica, como os jamaicanos: o visitante há de entender que a maconha é parte da cultura local, além de expressiva no cenário econômico – e, de certa forma, tolerada pelas autoridades. Farta e barata, está nas praias, nas ruas, nas bocas de (estima-se) mais de 80 por cento da população, ou cultivada, sem culpa, em vastos campos - sobretudo no sul, onde o clima seco favorece o plantio e a qualidade da erva. Ao ser indagado sobre o porquê de a droga ainda não ter sido legalizada, dado o maciço consumo, o jamaicano tem a curta resposta na ponta da língua: “Estados Unidos”.
De muitas raças, um povo

Sim, são encantadoras, as praias jamaicanas. Não, para quem tem Fernando de Noronha, uma visita à ilha caribenha não se justifica somente pela beleza de sua costa. Tampouco a Jamaica, sob o aspecto natural, poderia parecer exótica aos olhos de um brasileiro. Inúmeras semelhanças permeiam flora e fauna de ambos os países. O exotismo existe, mas certamente não reside na natureza exuberante da ilha (nós temos a Amazônia!). De diferente, para nós, a Jamaica tem o povo, com seus hábitos singulares e um magnífico dialeto repleto de signos, de sonoridade estranha, quase selvagem.
Seu inglês tem acento britânico –até 1962, a ilha foi possessão da Inglaterra. Mas o patois confere novo colorido ao idioma dos colonizadores. Curioso de se ouvir e dificílimo de entender, até por falantes de língua inglesa, o patois toma emprestadas palavras sobreviventes de dialetos africanos e oriundas do francês e espanhol, para dar vida a uma linguagem tão enigmática quanto vibrante. Conhecer alguns dados sobre a história da ilha, que registra os tainos ameríndios como seus primeiros habitantes, ajuda a desvendar parte do mistério que faz de seu povo uma gente tão original.
Era 5 de maio de 1494, quando Cristóvão Colombo avistou a terra habitada pelos tainos, durante a sua segunda viagem ao novo mundo. Os índios, naturalmente, foram sumariamente dizimados durante o curto reinado dos espanhóis, que durou até a invasão inglesa, em 1655. A segunda metade do século 18 trouxe consigo o ciclo do açúcar, numa época marcada por sucessivas insurreições de escravos, libertos cem anos mais tarde. O século anterior é lembrado como o período dos violentos conflitos políticos - num país dividido entre dois partidos- ,situação que acabou por apressar o movimento de independência. A 6 de agosto de 1962, a Jamaica içaria pela primeira vez sua bandeira preta, verde e amarela, emancipando-se da colônia. Já a Jamaica atual, a despeito de uma sensível redução na violência de natureza política, vive tempos de tensão social, num cenário de fortes contrastes. O dólar jamaicano, a moeda corrente, está bastante desvalorizado; o desemprego é alto e a pobreza, generalizada. Em compensação, a miséria absoluta não é uma situação comum e o jamaicano aproveita como pode os recursos de sua pequena ilha - incluindo-se, aí, e principalmente, as incontáveis belezas naturais.
“De muitas raças, um povo” (Out of many, one people): este é um dos principais lemas do país, com base na mistura de raças que compõem sua população. Da África, vieram os escravos; da Inglaterra, Escócia, Alemanha e Irlanda, os oficiais da colônia - além dos chineses, indianos, libaneses e sírios. Não que o país tenha superado preconceitos e a convivência racial se mostre perfeita. Em um passado até bem recente, brancos e mestiços tinham claros privilégios. Mas, numa Jamaica de óbvia maioria negra, reinventar a igualdade é fundamental para o bem da pequena nação em desenvolvimento – e indispensável à continuidade de sua proficiente indústria turística. Ou, de forma mais sucinta e humanitária, citando Bob Marley: “A liberdade só existe quando um povo se une”.


A Jamaica é verde e azul

É um refresco para a vista, um país onde as duas cores que mais falam sobre “natureza” estão em toda parte. A ilha é montanhosa e acidentada, coberta de mata e cortada por rios e cachoeiras, em seus 235 quilômetros de extensão no sentido leste-oeste e 80 quilômetros, de norte a sul. Túneis verdes e refrescantes compensam a precariedade das estradas - vale a pena enfrentá-las para se conhecer recantos do tipo cartão-postal. E tem o mar... O oceano é aquela imensidão azul de doer na vista –o tal azul-caribe que quem vislumbra, ainda que só em fotografias, prende a respiração.
Os outros matizes vêm das flores e frutos tropicais (helicônias, orquídeas, bromélias e frutas como o incrível ackee); das estamparias em tons generosos estendidas à espera do turista e, naturalmente, do quarteto de cores rasta, avistado em toda a ilha.
A pele reluzente do jamaicano; o rastaman com seus dreads exóticos; a natureza preservada; praias que competem entre si no quesito enfeitiçamento e a arquitetura colonial, a distribuir pontos de beleza aqui e ali, fazem da Jamaica uma terra muito charmosa.
De cinema

A 100 km de Kingston está Port Antonio, em Portland, na costa nordeste. Trata-se de uma tranqüila cidadezinha portuária – alcançável por uma estrada estreita, complicada de trafegar mas, felizmente, sombreada e toda verde. Famosa por ter tirado o juízo do ator Errol Flynn nos anos 50 (imagine como não seriam, na época, aquelas praias virgens e desertas), continua a fascinar o turista em busca de sossego. Deixando Kingston, esse foi meu segundo destino.
A paisagem é de cinema. Sem qualquer exagero: a transparente Lagoa Azul, por exemplo, serviu como cenário para o filme homônimo, e na região também foi rodado Cocktail, com Tom Cruise. Outras atrações são as praias de Boston Beach e Frenchman’s Cove Beach, a primeira pública e a outra, de onde nasce um riacho de água doce, freqüentável mediante uma taxa. Interessante, também, é o rafting em jangadas de bambu pelo Río Grande, num passeio que dura cerca de 2 horas e meia.
Prainhas rodeadas de verde e de arrecifes, com um mar entre o turquesa e o marinho; casarões antigos, em arquitetura georgiana; hotéis luxuosos e incontáveis mansões sobre as colinas conferem um toque especial ao vilarejo. Que, por razões muito claras, tornou-se alvo dos ricos e famosos – status que tem mantido até os dias atuais.
A Jamaica rural

Outro programa obrigatório para os fãs de Bob Marley: visitar a terra onde nasceu e viveu os primeiros anos, e onde seu corpo descansa.
Na bucólica Nine Miles, em Sant Ann, próximo à badalada Ocho Rios, casinhas se espalham, aninhadas entre montanhas cobertas de mata. A de Bob tornou-se ponto de peregrinação, transformada em aprazível área cercada de jardins, onde se encontram um pequeno cemitério destinado a familiares, a minúscula casa em que viveu com sua mãe, Cedella, e um cômodo, em separado, que guarda seu corpo.
Em Nine Mile, o ritmo é o de um vilarejo rural: a tranqüilidade se faz absoluta, a economia é agrícola e os habitantes, conservadores. Retraídos, sim, mas afeitos a uma boa conversa - e com muito a dizer. Experimente chegar de mansinho, apure os ouvidos para entender o dialeto e faça dessas conversas proveitosa experiência.
Antes de chegar em Nine Mile e após deixar o vilarejo, passei por Ocho Rios, balneário na costa norte onde aportam grande parte dos navios de cruzeiro na Jamaica, e que tem como um de seus principais trunfos a famosa Dunn’s River Falls, uma série de cachoeiras que os turistas “escalam” de mãos dadas, para não escorregar. Porque chovia muito e o local estava lotado, como acontece quando há navios de cruzeiro atracados no porto, não me animei a dar um mergulho nas quedas d’água, freqüentemente procuradas como locação pela indústria cinematográfica. Parti direto para Negril, passando rapidamente pela agitada Montego Bay (Mobay, para os habitués), a segunda maior cidade da Jamaica e primeira em número de turistas. Ali, certamente se encontram os melhores hotéis de toda a ilha.
Democracia reggae

Uma vasta gama de azuis e verdes se alterna para compor a morna piscina do mar de Negril (na costa noroeste da ilha), cidadezinha que desabrochou na esteira do movimento hippie, nos anos 60. A areia, um talco, termina onde começam os hotéis, bares e restaurantes que permeiam uma extensa orla de 11 quilômetros, reunindo as baías de Long Bay, Bloody Bay e Orange Bay. Em agosto, baixíssima temporada, já achei aquilo movimentado. Imagino como não deve ferver no inverno (sim, a alta na Jamaica começa em dezembro, num inverno que se caracteriza por chuvas mais espaçadas).
De dia, o programa é se esticar na areia ou experimentar as tranqüilas braçadas que um mar sem ondulações pode oferecer. Naturalmente, amantes de esportes náuticos vão querer ir além. Mergulhar a partir dos penhascos (os cliffs) em West End será, então, uma experiência única. Não resisti ao apelo das delícias de um mergulho no Caribe (a Jamaica, bom lembrar, é famosa por suas águas, tidas entre as melhores do mundo para a prática do esporte) e resolvi conferir. O ponto alto da aventura foi a visão de um peixe diferente, todo rosa-chiclete e azul-caribe – parecia enfeitado para decoração de festa infantil!
Compras também fazem parte do roteiro, e o comércio de Negril tem boas opções em licores de café, ótimos runs de fabricação local, camisetas, cangas pintadas à mão, toucas rastafári conhecidas como tam, o mundiamente famoso café das Blue Mountains e souvenires diversificados - irresistíveis quando se deseja levar para casa um pedacinho da Jamaica, ou ofertá-lo aos amigos.
À noite, nem se quiser você fica parado: a batida do reggae é um chamamento, que obriga o corpo a acompanhá-la. Diariamente há “festinhas” nos cliffs ou na praia, em palcos montados nos restaurantes e bares da orla. Músicos da terra convidam os de fora a se integrar, numa deliciosa brincadeira capaz de irmanar raças, credos e classes sob as bênçãos de um ritmo que lembra a batida do coração. Ponto para o reggae, na qualidade de musica afeita à critica social e propagadora de ideais igualitários.
Beleza agreste

Encontrei a melhor surpresa da viagem na ensolarada costa sul, onde passei os últimos dias. Treasure Beach (nome genérico para a área, que engloba as baías de Great Bay, Calabash Bay e Frenchman’s Bay), ou “Praia do Tesouro”, não se chama assim à toa. E seu tesouro não se restringe à beleza das praias. À primeira vista, com suas areias escuras, podem parecer até mesmo feias, para quem se rendeu à brancura fina, espetacular, das areias do norte. Injustiça. É o tipo de beleza, o que muda. Ali ela é agreste, mais crua. Um olhar atento consegue captar toda a graça da paisagem, deslumbrante: árvores retorcidas e cactos floridos esparramam-se nas areias e encostas dos morros e anunciam o clima seco; um mar de azul inexplicável, mais escuro, quebra, espumoso, sobre rochedos que variam freqüentemente de tom, formato e altura.
Ainda mais convidativa é a sensação de liberdade que domina a minúscula vila de pescadores. As casas, coloridas, não têm muro. Polícia, não se vê. O clima é de tranqüilidade absoluta e convida a um mergulho para dentro de si. “Treasure Beach é uma comunidade”, diz, satisfeito com o lugar onde nasceu e de onde nunca saiu, o jovem Orville - o rasta branco de quem já falamos, de tez dourada e doces olhos verdes. A costa sul é onde a Jamaica se mostra mais branca: os negros têm a pele menos escura e há tipos como Orville, fruto de intensa miscigenação (falam de um navio holandês que teria aportado por lá, mas o próprio moço se mostra hesitante ao apontar a sua origem).
Pode-se concluir, sem medo de errar, que o maior tesouro de Treasure Beach é seu povo afável, cordial e sempre disposto a ajudar quem vem de fora. Como forasteira, não tive vírgula a reclamar. Como observadora, achei realmente desarmados e verdadeiros os seus sorrisos.
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A não ser pela pimenta que algumas vezes me pareceu exagerada, chegando a comprometer pratos promissores (a criativa culinária jamaicana capricha nas vermelhinhas, e é sempre bom ter uma bebida refrescante por perto), quase que só tenho elogios à ilha. Guardarei a Jamaica como um perfeito cenário de idílio e comunhão com a natureza. Sua cultura apaixonante faz do país verdadeiro laboratório. A ser explorado com gosto - como se saboreia uma fruta desconhecida.

Por Denise Jardim
(publicada em novembro de 2006 nos jornais Correio Braziliense e Estado de Minas)